O EXPOENTE esteve à conversa com a realizadora Susana Sousa Dias, que nos contou a sua experiência na Fordlândia. A primeira viagem da artista para esta zona do Brasil deu origem ao documentário “Fordlândia Malaise” e, noutras visitas, surgiu material para “Fordlândia Panaceia”. O segundo filme ainda não estreou, mas a realizadora já pensa no terceiro.
O EXPOENTE (E) - O que é Fordlândia?
Susana Sousa Dias (SSD) - A Fordlândia é uma company town, ou seja, uma cidade-empre-
sa, que foi fundada em 1928 pelo Henry Ford. Estamos no princípio do século, os britânicos têm o monopólio da borracha. E começam com as grandes plantaçõesna Malásia. E o Henry Ford tenta quebrar esse monopólio e, sobretudo, produzir borracha para a sua própria fábrica. Para as suas várias fábricas de automóveis. E então resolve, fazer uma série de investigações no terreno, manda uma série de pessoas, e resolve então, faz um acordo com o governo brasileiro, que cede um milhão de acres, e então fica com a zona para criar a sua própria fábrica de borracha.
Portanto, no fundo, ele vai fundar esta company town, segundo os modelos que já estava a utilizar nas suas company towns nos Estados Unidos e constrói-a, e para fazer isto ele vai queimar toda uma grande área de floresta. E destruiu uma série de coisas, e constrói depois, segundo este modelo, segundo este desenho urbano, esta cidade. Cidade quer dizer, ele teve 5 mil pessoas lá a viver, 5 mil trabalhadores, basicamente. E tudo era controlado. Depois as pessoas que entravam, as pessoas que saíam, porque a saída, os caminhos eram através do rio.
E portanto, é uma coisa estranha. Porque de repente é destruir uma grande parte da selva
para implantar-se uma cidade com traçado completamente estranho dentro desta zona. Depois, vêm os trabalhadores. E o desenho daquilo é típico da company town, é extremamente estratificado. Portanto, tem o bairro para os administradores americanos, que é hoje chamada a Vila Americana, numa zona, portanto eram as melhores casas, tem eletricidade, tinham carros, piscina, campo de golfe, construiu um hospital, que foi dos hospitais mais modernos da altura, um hospital de ponta, tinha cinema. E depois tinha outras casas para trabalhadores, e consoante a graduação dos trabalhadores, as casas eram de pedra, depois passavam de madeira, e depois tinha aquilo que era chamado os acampamentos, que são regiões que depois têm várias casas mais pequeninas onde os trabalhadores estavam, e depois toda uma série de gente. Portanto, isto é a Fordlândia. E a Fordlândia tinha outras características, já agora que eu conto assim muito rapidamente, porque ele impôs um determinado tipo de alimentação, que não tem nada a ver com a alimentação das pessoas da Amazónia, ou com os brasileiros, porque aquilo também foi um ponto de migração, portanto veio muita gente de fora à procura de trabalho. Impôs as danças americanas, poesias americanas, portanto no fundo tentou trazer a "civilização", à selva, ba-
sicamente era isso. E também impôs a "lei seca", portanto as pessoas não podiam beber, os administradores iam à casa dos trabalhadores para ver se eles cumpriam as ordens, portanto no fundo havia ali um regime totalmente neocolonial.
E - Um século depois, o que é que resta desta descrição que faz?
SSD - Um século depois, no fundo há uma série, portanto as construções
estão lá, os galpões, a usina, a torre d’água, já há um pouco de cadente, porque precisamente não se pode mexer porque foram classificadas, as pessoas não podem reparar, mas depois o governo também não, sobretudo o local, não repara também, portanto aquilo tem alguns problemas. Mas as pessoas continuam lá a trabalhar, já não nas funções originais.
Agora, por exemplo, a usina tem lá uma oficina de reparação de automóveis, estão a fazer um projeto de viveiros, portanto estão a plantar plantas autóctones que depois vão dar pelos produtores da região para cobrir o desmatamento que foi feito. Portanto há uma série de pessoas, então uns que são descendentes dos trabalhadores da Ford, que continuaram a trabalhar na companhia e que depois, quando o ford foi embora em 1945, a Ford Motor Company, e aquilo passou para a União. E depois é que passou para o governo local, portanto no fundo, e foram tendo vários trabalhos, e agora tem uma série de reformados, e depois tem jovens
que vão aparecendo, tem a escola, que é sempre muito ativa, tem duas escolas, tem comércio, pequeno comércio, portanto basicamente, e agora começaram a surgir outras empresas que estão a extrair gesso, portanto isto é uma zona de extrativismo. Mas depois é uma vila muito viva, quer dizer, é muito interessante, as pessoas, os jovens que vão à escola, os professores, todo aquele microcosmos. As pessoas são fascinantes, tem dois grupos folclóricos também, portanto agora já voltaram a viver. Quando eu estive lá em 2018 e 2019 não tinham futebol. Quando eu voltei lá em 2021 já tinham já tinham reavivado os dois clubes de futebol, portanto tem uma vida muito própria.
E - E de onde é que veio a vontade de fazer o primeiro documentário, “Fordlândia Malaise”?
SSD - O que aconteceu foi que há um grupo, há um coletivo artístico
francês e de pesquisa chamado Suspended Spaces, que está muito ligado à Sorbonne, que são investigadores-artistas e eles formaram-se em 2007 e trabalham sobre aquilo que eles
designam por espaços suspensos, que foram projetos da modernidade, que ficaram depois em suspensão, não se realizaram devido a questões económicas, históricas, sociais, as razões são diferentes, e que ficaram desde essa altura num estado de suspensão. E eles já trabalharam no Líbano, no Chipre, portanto, em vários sítios, e decidiram trabalhar sobre a For-
dlândia e convidaram-me a fazer parte do projeto. Eu fui com eles, portanto, é o núcleo original do coletivo, e depois vão convidando investigadores artistas para irem com eles para cada projeto. E eu fui uma das pessoas convidadas. E, de facto, a Fordlândia, num certo sentido, é um espaço de suspenso, porque foi um projeto falhado.
Portanto, houve as plantações de borracha e morreram todas, quer dizer, as árvores morreram todas, porque plantaram mal, não conheciam o terreno, não havia especialistas, portanto, foi um projeto falhado. E a ideia era trabalhar sobre a região. Eu não sabia nada sobre Fordlândia,
mas fiquei muito interessada, porque eu trabalho sobre questões de poderes e interessou-me muito esta ideia do neocolonialismo e como é que, quer dizer, de um país colonizado, ou de uma
zona anteriormente colonizada pelos portugueses, de repente aparece uma nova colonização, desta vez do novo mundo, do próprio novo mundo, americana, e depois também porque tenho uma tetravó indígena lá perto, daquele triângulo. O triângulo Manaus-Belém, naquela zona, e, portanto, interessou-me muito ir também lá para perceber um pouco também destas origens. Foi aí que nasceu o meu interesse pela Fordlândia. E depois eu fui para lá sem saber que ia fazer um filme. Porque a ideia era ir para lá e depois participar numa exposição em Paris. E eu pensei, se calhar vou fazer uma instalação, ou vou fazer um pequeno vídeo, mas de facto entusiasmei-me de tal forma com o que se passava lá e com o que eu encontrei lá que quando voltei ti-
nha material para fazer um filme. E fiz o filme. E depois o filme estreou na Berlinale, que é um dos grandes festivais, é um dos três maiores festivais do mundo. E a partir daí começou a viajar por
todo o lado. E, paralelamente, eu fiquei muito interessada em voltar lá para aprofundar toda uma série de questões que sei que captei nesse filme, mas que eu senti necessidade de aprofundar, de conhecer melhor as pessoas. Resolvi voltar lá em 2019 e depois voltei lá em 2021 e já tenho material para fazer um segundo filme.
E - E este segundo filme está ligado a quê? Tem mesmo o enquadramento?
SSD - O primeiro filme chama-se Fordlândia Malaise, porque no fundo é a cidade que se impõe na floresta, portanto é aquela doença, é aquele mal-estar que vem deste projeto ferozmente capitalista, que fere a natureza, que fere as pessoas. Pessoas, natureza, é um todo. Nós somos natureza também. Mas, portanto, é um exterior que vem ali implantar. O meu filme tenta tratar essas questões de poder, quer dizer, perceber como é que as pessoas vivem. Que projeto é este? E o que é que há? Este projeto apagou tudo em volta. Ninguém fala das pessoas que estão lá hoje. Ou seja, no fundo, quando se fala de Fordlândia, fala-se do projeto de Ford e depois há dois pontos cegos, que é o que é que ficou depois do Ford ou da Ford Motor Company se ter ido embora e o que é que estava lá antes.
E, portanto, o filme Fordlândia Malaise, ao fim ao cabo, vai mostrar todas as construções do Ford, que no fundo elas vão cristalizar esta espécie de memória forte. Que toda a gente conhece. Quando se fala de Fordlândia, é o Ford. Mas que apaga completamente as memórias fracas, que é o que é que ficou, o que é que continuou, o que é que estava antes, que ninguém fala. E o projeto tenta dar conta disso e, portanto, traba-
lha nessa dicotomia que depois se reúne e, no fundo, faz um todo. E que muito tem a ver também com os próprios mitos. Isto é uma coisa muito interessante e que eu gostei muito. Quando cheguei lá, foi perceber que, como não há história antes da história do Ford, eles foram buscar os mitos da Amazónia para criar a própria mitologia da Fordlândia. Para a cobrir este vazio existencial. E o filme tenta mostrar isso. Agora, o filme vai se chamar Fordlândia Panaceia, por-
que panaceia também é um título dúbio. É aquilo que cura todos os males, mas também pode ser
aquilo apenas que camufla todos os maus. Mas a ideia, precisamente, é mostrar o que é que está a ser feito para curar a Fordlândia. Os viveiros, por exemplo, que estão a ser construídos, estão a ser plantados, estão a ser dados aos produtores para cobrir o desmatamento. Aquilo que não se sabia que estava antes e que quando estive lá em 2021, eles descobriram fragmentos indígenas. Portanto, a história indígena do que estava lá antes do Ford ter chegado começou a aparecer. Portanto, eu acompanhei as escavações, pessoas a escavar a terra e os artefactos indígenas a
aparecerem. Portanto, é a história a emergir. Portanto, no fundo, é toda esta parte, o que é que os habitantes fazem, o que é que está a acontecer de forma a curar esta malaise que esteve sempre presente.
E - E como é que descreve a sua experiência na Fordlândia?
SSD - Foi uma experiência muito intensa. Aliás, não é por acaso que eu voltei lá mais duas vezes, que ainda estou em contacto com as pessoas e que vou lá voltar outra vez. Não sei se é neste ano ou se será no próximo, mas vou lá voltar. É impressionante. Porque aquilo é muito particular e é incrível. De facto, aquelas pessoas, a energia daquelas pessoas... Fiquei muito fascinada! Eu diria que a Fordlândia já faz parte da minha vida. Há toda uma série de ligações que se vão formando. Também porque isto se liga com a minha própria história.
Dentro da minha família, tenho uma história de violência colonial: foi o oficial português que casou com a indígena. Portanto, há ali uma história num contexto de "revolta" e de "pacificação",
como os portugueses chamavam. Portanto, há todas estas questões que eu acho que merecem ser vistas e retrabalhadas. A própria história portuguesa tem que ser, em muitos casos, revista, retrabalhada, abrindo novas perspectivas. Portanto, é isso que me interessa.
E - Por que dificuldades é que passou até chegar ao resultado final?
SSD - Filmar em Fordlândia. Como fui no contexto de uma residência artística, não ia levar operadores, nem uma equipa, nem sequer tinha dinheiro para isso. E, portanto, levei os equipamentos todos. E, curiosamente, foi fácil filmar, captar as imagens, porque aquilo
é muito é extremamente fotogénica, é impressionante. O som foi mais complexo, pois tive muito trabalho de pós-produção.
E depois foi usar o drone, porque eu nunca tinha usado um drone. Também me arrisquei. Mas essa parte correu toda muito bem. E depois, como tenho uma estrutura que é uma produtora, que tem equipamento e tem os meios, eu fiz toda a correção de cor. E foi muito fácil falar com as pessoas também.
E depois trata-se de descobrir o filme. Porque como eu não ia a pensar num filme, fui descobrir o filme. Mas da segunda vez foi muito mais difícil, porque foi filmar pessoas. E eu, de facto, não sei filmar pessoas. Sei filmar coisas, objetos...
Filmei as pessoas todas da primeira vez. E é fácil filmar quando são conversas. Portanto, aí também foi relativamente fácil. Não sei filmar pessoas em movimento. Não tenho essa prática. Nem o talento. Há aqueles realizadores que, de facto, conseguem falar, conseguem filmar, conseguem fazer tudo. Eu não sou uma dessas realizadoras. Portanto, aí foi a principal
dificuldade. Por isso é que eu vou lá voltar uma quarta vez, com uma equipa para filmar. Mas aí já é um outro filme. Já é um terceiro filme, que vai ser mais lato. Que vai ter a parte da Fordlândia,
mas também vai ter a parte de Manaus. E aí já vai falar da história familiar. Portanto, esta longa história, mas que está dentro de um triângulo da Amazónia. E não apenas na Fordlândia.
E - Já há datas para o segundo filme? E perspectivas para o terceiro?
SSD - Este segundo filme, eu já o queria ter acabado no ano passado, não
consegui. Vou acabar este ano, de certeza. Em princípio, para estrear em fevereiro de 2024.
E o terceiro vai ser filmado ou em agosto, ou depois no ano seguinte, em abril.
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