Auto-golpe ou "vítima de assédio antidemocrático"? 6 perguntas sobre o que se passa no Peru
- Marta Sofia Ribeiro
- Dec 31, 2022
- 1 min read
Desde dia 7 de dezembro já morreram mais de 20 pessoas no Peru. O Congresso destituiu Pedro Castillo, Dina Boluarte assumiu o poder. Os peruanos saíram às ruas contra um golpe de Estado, mas não há acordo sobre quem o começou. O ex-Presidente está em prisão preventiva durante 18 meses e as próximas eleições estão marcadas para abril de 2024, dois anos antes do que estava previsto.

O que está a acontecer no Peru?
Já morreram mais de 20 pessoas, e o número tende a aumentar. Os protestos começaram ainda antes da votação do impeachment. Quando Pedro Castillo anunciou a dissolução do Congresso e a implementação de um “governo de exceção” gerido por decretos-lei, a população saiu à rua. O então presidente declarou ainda recolhimento obrigatório entre as 22h e as quatro da manhã. Na primeira semana de protestos, morreram oito pessoas, cinco das quais adolescentes. As manifestações começaram nas zonas mais pobres do sul do Peru, mas, à medida que o tempo foi avançando, chegaram a todo o território.
A Polícia Nacional do Peru escreveu um tweet a informar da sua ação sobre a situação. A acompanhá-lo, havia ainda uma imagem que parecia mostrar Castillo já detido, depois de o Congresso ter votado a sua destituição. O tweet chegou a estar afixado na página, mas mais tarde foi eliminado. A mensagem que tinha sido publicada no site do Governo, a confirmar a detenção do ex-chefe de Estado, seguiu o mesmo caminho.

O atual governo provisório é liderado por Dina Boluarte, vice-presidente do executivo de Castillo. É a primeira mulher no cargo e, em menos de um mês já teve dois executivos. A decisão de passar a liderança para Boluarte partiu dos deputados que, depois de votarem a destituição de Castillo, convocaram-na para assumir a presidência no Congresso.
Devido aos protestos, o governo provisório declarou estado de emergência durante 30 dias. Esta medida traduz-se, entre outras coisas, numa perda de direitos de reunião e livre circulação do país, e permite que as forças de segurança revistem casas sem necessidade de ordem judicial.
Durante algum tempo os protestos acalmaram, mas o governo peruano já mobilizou militares perante um possível regresso. O ministro da Defesa assegurou que as Forças Armadas apoiarão a Polícia Nacional Peruana, devido a um decreto de emergência emitido pelo governo provisório de Boluarte. O executivo garante que já foram identificadas as zonas onde podem vir a ocorrer protestos mais violentos, a partir de 4 de janeiro.
No dia 26 de dezembro, seis pessoas, incluindo três polícias, foram detidas por alegado envolvimento num caso de corrupção ligado a Pedro Castillo.
Quais os desafios do executivo de Dina Boluarte?

Dina Boluarte é chefe de Estado desde dia 7 de dezembro. No dia em que assumiu o cargo, depois de Castillo ter sido afastado da Presidência, acusou-o de tentar levar a cabo um golpe de Estado. Aos peruanos, pediu unidade, conversa e acordos. Anunciou ainda que não queria “máfias” no governo e que o seu gabinete teria “todas as forças democráticas". Aos que a acusam de tomar o poder ilegalmente pediu “um espaço, um tempo para resgatar o país”.
O primeiro executivo da líder peruana durou duas semanas. No dia 21 de dezembro, a atual chefe de Estado nomeou Alberto Otárola, até então ministro da Defesa, como primeiro-ministro do Peru. Até lá, o cargo tinha sido confiado a Pedro Angulo. A líder peruana classificou o primeiro executivo como “muito técnico” para o tipo de instabilidade social vivida no país.
Jorge Luis Chávez substituiu Otárola no Ministério da Defesa. Houve ainda duas demissões: Patricia Correa, da pasta da Educação, e Jair Pérez, do Ministério da Cultura. Tanto Correa como Pérez saíram em protesto contra a ação das autoridades perante os protestos populares. Óscar Becerra é o novo Ministro da Educação e Leslie Urtega lidera agora o Ministério da Cultura. Víctor Rojas Herrera, ex-polícia, assumiu o Ministério do Interior, substituindo César Cervantes, também ex-general da Polícia Nacional Peruana.
No dia 16 de dezembro, da bancada do partido Peru Libre, surgiu uma denúncia contra o então ministro do Interior, César Cervantes, e Alberto Otárola. O deputado Alex Flores Ramirez apresentou no Congresso uma denúncia constitucional por “homicídio qualificado e lesões graves”, durante as manifestações na região de Ayaucho, que exigiam a libertação de Castillo e eleições imediatas.
Da denúncia constavam a lista de feridos que deram entrada no hospital de Ayaucho a 15 de dezembro, fotografias e registos áudio e vídeo que mostravam a atuação das Forças Armadas naquela zona. Flores Ramirez é representante da região de Ayaucho, onde decorriam os maiores e mais violentos protestos e exigia a destituição dos dois ministros e impedimento de exercerem cargos públicos durante dez anos.
Quais são os antecedentes desta crise?
O mandato de Pedro Castillo tem sido atribulado desde o início. Foi eleito em julho de 2021, já teve cinco gabinetes, mais de 80 ministros, foi alvo de várias investigações criminais e dois processos de impeachment, que nunca foram concretizados.
O presidente peruano formou um executivo com muito pouca (nenhuma, em alguns casos) experiência governativa. Para além disso, vários membros estavam envolvidos em investigações de corrupção, violência doméstica e até mesmo homicídio. Se olharmos para o passado recente da política peruana, estes dados deixam de ser tão estranhos. Em 2017, nove ex-governantes estavam presos e outros cinco sob processos de investigação, quatro desses estavam em prisão preventiva. São números divulgados pelo procurador anticorrupção Amado Enco. Ainda este ano, houve eleições regionais e municipais: 89 candidatos a governador tinham cadastro e mais de 150 autarcas e governadores tinham antecedentes de violência familiar.
Pedro Castillo, o agora destituído presidente peruano, foi várias vezes acusado em processos criminais, que iam desde obstrução à justiça até à corrupção. Foi acusado de liderar uma organização criminosa, coordenada pela agora ex-primeira-dama, Lilia Paredes. Alegadamente, lucrariam com contratos realizados por meio do governo.
Também devido a esses escândalos e acusações, o Congresso tentou destituir Pedro Castillo três vezes. As duas primeiras não foram a lado nenhum, à terceira foi de vez. O presidente foi destituído, preso e as ruas foram invadidas em protesto.
A primeira tentativa de impeachment deu-se em dezembro de 2021, dois meses depois de três partidos de direita terem questionado a legitimidade moral de Castillo. Na altura, tinham sido encontrados o equivalente a 188,6 milhões de euros numa casa de banho utilizada por Bruno Pacheco, ex-secretário presidencial de Pedro Castillo, e havia uma investigação a decorrer. Acabou por não ser destituído, eram necessários 130 votos a favor da retirada e só 46 deputados votaram favoravelmente.
Em março de 2022, um novo processo de impeachment. Desta vez, o Congresso acusava Castillo de “incapacidade moral permanente”, apesar de não haver qualquer definição legal deste termo. Nessa altura, decorriam três investigações que tinham Pedro Castillo como suspeito. As acusações eram de suborno e corrupção. Só depois de sair da liderança do país poderia enfrentar a lei. Pela segunda vez, os votos a favor da destituição não chegaram: eram preciso 87 e apenas 55 deputados votaram a favor.
A instabilidade política no Peru aumentava até que, no dia 7 de dezembro, a bolha estourou. O impeachment estava marcado para esse dia às 15h15, mas, já no dia anterior, Pedro Castillo, tinha preparado o caminho que estava prestes a abrir. Acusou a oposição de “dinamitar a democracia e ignorar o direito de escolha” e almejar “aproveitar e tomar o poder que o povo lhes retirou nas urnas”.
Algumas horas antes das 15h15, o Presidente anunciou que ia dissolver o Congresso e governaria por decreto até que se estabelecesse um novo. Acrescentou ainda: A única agenda do Congresso desde 29 de julho de 2021, em que tomei posse como presidente do República, foi e é a destituição presidencial.”
A ordem foi ignorada. Às 12h30, vários ministros apresentaram a demissão e o processo de impeachment avançou mesmo e, à terceira tentativa, venceu, com 101 votos a favor. As Forças Armadas e a Polícia Nacional anunciaram que não iam cumprir as ordens de Pedro Castillo.
Demissões em bloco, destituição, distanciamento das forças de segurança. Em poucas horas, a pouca robustez política que restava a Castillo foi destruída. O Presidente foi detido quando, alegadamente, tentava escapar do palácio presidencial. A detenção foi confirmada pelo Ministério Público que, em comunicado, afirmou ter ordenado “a prisão de Pedro Castillo Terrones pelo suposto crime de rebelião, regulamentado no artigo 346º do Código Penal, por violação da ordem constitucional”.
O que reivindicam os manifestantes?
Nestes protestos há três fações. Os primeiros que saíram à rua estavam contra Pedro Castillo pela tentativa de auto-golpe e manifestaram-se mal o ex-chefe de Estado anunciou a dissolução do Congresso. Existe ainda quem seja contra a liderança de Dina Boluarte por ter pertencido ao executivo de Castillo. Mas as vozes mais proeminentes nas manifestações, nos últimos tempos, têm sido defensoras do regresso de Pedro Castillo, alegando que o antigo Presidente foi vítima de um golpe, com envolvimento de Boluarte.
Vídeo: @Joxe_Kar no Twitter
Como (quase) sempre, as manifestações têm apoio de algumas organizações sindicalistas, como a Confederação Geral de Trabalhadores do Peru, a Organização Indígena Nacional e a Central Única de Grupos Campestres do Peru.
A explicação para este apoio popular quase generalizado parte das próprias origens de Castillo. É filho de dois camponeses analfabetos e nasceu e viveu em Cajamarca, uma das zonas mais pobres do Peru, onde se localiza a maior mina de ouro da América do Sul. Teve muitos trabalhos, vendeu jornais, limpou hoteis, foi professor – foi, aliás, líder sindical durante a greve de 2017 -, e, nas eleições, em 2021, venceu a elite política peruana com o slogan “Pelo fim da pobreza num país rico”.
A 12 de dezembro, os manifestantes incendiaram carros e invadiram o aeroporto na cidade de Arequipa e os voos tiveram de ser suspensos. Milhares de turistas, incluindo 66 portugueses, ficaram presos no país.
Vídeo: @Marco_Teruggi no Twitter
Machu Picchu foi encerrado e cerca de 3000 turistas ficaram retidos nas redondezas. Havia estradas bloqueadas e deixou de haver abastecimento de minas de cobre e de mercados locais de alimentos. Cinco aeroportos chegaram a estar fechados. No dia 21 de dezembro, apenas sete portugueses ainda não tinham conseguido regressar.
Dia 19 de dezembro, a Polícia Nacional Peruana publicou, no Twitter, uma tabela que dava conta da situação das vias a nível nacional.
Como é que a comunidade internacional vê esta situação?
O presidente do México defendeu, desde o início, Pedro Castillo. No próprio dia da destituição do Presidente peruano, escreveu três tweets, onde refere o “clima de confronto e hostilidade” “desde o início da presidência legítima de Pedro Castillo”, devido a “interesses das elites económicas e políticas”. Acrescentou ainda que considera “suis generis” a acusação de “incapacidade moral”. E terminou: “Esperemos que os direitos humanos sejam respeitados e haja estabilidade democrática em benefício do povo”.
Marcelo Ebrard, ministro das Relações Externas mexicano, quando questionado pelos jornalistas sobre a possibilidade de receber o ex-Presidente peruano, afirmou: “Temos [México] uma política favorável ao asilo. Se ele pedir, não devemos opor-nos a ele, mas ele não o fez”. Castillo está em prisão preventiva durante 18 meses, mas a família chegou no dia 21 de dezembro a território mexicano, onde encontrou asilo político.
A relação conturbada entre o governo de Boluarte e o México não fica por aqui. No dia 20 de dezembro, o embaixador do México no Peru, Pablo Monroy, foi declarado pelo governo peruano como ‘persona non grata’. Deram-lhe 72h para abandonar o território nacional.
Na semana anterior, México, Bolívia, Argentina e Colômbia tinham emitido um comunicado, em que pediam “respeito pela vontade popular”. “Não é novidade para o mundo que o presidente Castillo Terrones, desde o dia da sua eleição, foi vítima de assédio antidemocrático”, pode ler-se na nota.
Já o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, rotulou “as medidas adotadas” por Castillo como “incompatíveis com o arcabouço normativo constitucional daquele país” e acrescentou que “representavam violação à vigência da democracia e do Estado de Direito”. Ao contrário dos governos dos países sul-americanos supracitados, o governo brasileiro manifestou “disposição de seguir mantendo as sólidas relações e cooperação que unem os dois países [Brasil e Peru]” e desejou “êxito à Presidente Dina Boluarte na sua missão como Chefe do Estado peruano”.
Lisa Kenna, embaixadora dos Estados Unidos da América no Peru, escreveu, no Twitter, logo no dia da destituição, que o país “recusa categoricamente qualquer extraconstitucional para impedir que o Congresso cumpra o seu mandato” e apelou para que o então Presidente revertesse “o seu objetivo de dissolver o Congresso” e “permitisse que as instituições democráticas peruanas funcionassem segundo a Constituição”. No dia seguinte, a Casa Branca reconheceu Dina Boluarte como chefe de Estado do Peru.

Luís Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), também apoia Boluarte. Depois de um discurso no Conselho Permanente, que se reuniu extraordinariamente para discutir a situação do Peru, tweetou: “Reafirmamos [a OEA] o apoio à democracia, paz, institucionalidade e à necessidade imperativa de reconstruir o caminho democrático; com um diálogo inclusivo, aberto, franco e respeitoso”.
O apoio a Dina Boluarte estende-se até ao outro lado do oceano. Um porta-voz do Serviço Europeu para a Ação Externa, referiu que “a União Europeia apoia os esforços políticos em curso liderados pela Presidente Dina Boluarte”. No mesmo comunicado, pede respeito pelo direito de manifestação pacífica do povo peruano e mostra “preocupação” face às mortes e ferimentos que têm eclodido no país.
A Amnistia Internacional afirma ter recebido “numerosos relatos de violações de direitos humanos pelas forças militares e policiais nas manifestações, até mesmo a utilização de tortura”. Erik Guevera Rosas, diretora das Américas da Amnistia Internacional, pede que “termine de imediato o uso excessivo da força por todas as forças estatais” e apela “à procura de uma solução urgente, através do diálogo, para travar o crescimento da violência e prevenir a morte de mais pessoas”.
Quando haverá eleições?
Os peruanos vão às urnas em abril de 2024. O Congresso votou, dia 20 de dezembro, a antecipação de 2026 para 2024. A decisão implica que Dina Boluarte terá de entregar o cargo ao vencedor das eleições daqui a 15 meses.
Segundo as sondagens, 83% dos eleitores são a favor da antecipação do plebiscito. A reforma constitucional do executivo de Boluarte propunha eleições já em dezembro de 2023, mas a medida só teve o apoio de 49 deputados, 33 votaram contra e houve 25 abstenções.
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