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Writer's pictureJoana Rita Cirne

Irão: o início de uma possível "primavera iraniana"

O que começou apenas como uma resposta à morte de Mahsa Amini tornou-se num movimento muito maior. A jovem curda é, atualmente, um símbolo de unidade e de protesto. Por todo o país vive-se um ambiente de inquietação e de revolta. Por Joana Rita Cirne.
Imagem: Julien de Rosa

Mahsa Amini, de 22 anos, estava a visitar Teerão no dia 13 de setembro, quando foi detida pela Patrulha da Orientação da República Islâmica do Irão. Estes agentes, mais conhecidos pela “polícia da moralidade”, encarregam-se de garantir que as regras rígidas de vestuário impostas pela lei do país são respeitadas. Mahsa não usava o hijab corretamente. O véu que tinha sob a cabeça não lhe cobria o cabelo na totalidade.


Segundo o canal de televisão Iran International, Amini foi presa enquanto passeava na rua com o irmão, que protestou a sua detenção. A patrulha informou-o que a jovem apenas seria levada para um centro de detenção, onde teria uma “aula de esclarecimento” e que, passado uma hora, seria libertada. Nesse mesmo dia acabou por sair da esquadra, não pelo seu próprio pé, mas já em direção ao hospital.


Nas mãos da polícia foi espancada e ficou em coma, de acordo com o The Guardian. Acabando por seguir para os cuidados intensivos do Hospital Kasra. Três dias depois da detenção, a 16 de setembro, a jovem curda acaba por morrer após “sofrer um ataque cardíaco”, de acordo com a versão das autoridades. Os pais de Mahsa negaram que ela sofresse de qualquer problema de coração.


Desde a revolução de 1979 que sob a sharia, a lei islâmica, é imposto às mulheres o uso do véu, e negada a liberdade de escolha sobre o que vestir. A ideologia dogmática subjacente à obrigatoriedade do uso do véu está profundamente enraizada. Quem garante o seu cumprimento são as patrulhas que circulam nas ruas, de forma a detetar os trajes considerados inapropriados. O não cumprimento das leis do hijab é uma infração grave, que leva a detenções, multas e até a penas de prisão. As mulheres identificadas por estas patrulhas arriscam-se a passar meses, talvez anos, numa cadeia.

A BBC afirma que são vários os iranianos, a favor do governo, que criticam a existência desta “polícia da moralidade”. “Patrulhas de Assassínio” é a tradução de uma das hashtags usadas nas redes sociais para referência a esta polícia. A BBC refere ainda que estes novos casos contribuem para a divisão, cada vez mais acentuada, da sociedade iraniana. Os jovens afastam-se dos valores dos governantes conservadores.


“Mahsa não morreu, tornou-se um símbolo”
Imagem: Orhan Qereman/Reuters

No jazigo de Amini foi gravada a seguinte inscrição: “Mahsa não morreu, tornou-se um símbolo”. O nome da jovem curda é, atualmente, um símbolo de unidade contra o esquecimento de todas as outras vítimas de repressão política e das restrições que são impostas às mulheres. Entre elas Sahar Khodayari de 29 anos (autoimolou-se em 2019, com medo de ser presa por querer assistir a um jogo de futebol – depois deste sacrifício pessoal, a UEFA obrigou o Irão a permitir a entrada de mulheres nos estádios.); Mona Heydari de 17 anos (decapitada pelo marido, que exibiu a sua cabeça pelas ruas da cidade de Ahvaz, num chamado “crime de ódio”, em fevereiro deste ano); Neda Agha Soltan (morta em 2009, durante a repressão dos protestos do Movimento Verde contra a reeleição do presidente ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad).


Como forma de protesto contra a “polícia da moralidade”, algumas mulheres cortam o cabelo ou queimam o lenço. Em vez de se imolarem, incendeiam os símbolos que as oprimem e constrangem. Queimar estes símbolos é um sinal de esperança e um ato de emancipação. Nos primeiros dias dos protestos, as palavras de ordem “Mulher, Vida, Liberdade” eram entoadas pelas ruas do Curdistão, mesmo antes de ressoarem na capital do Irão.

Descontentamento político
Imagem: Getty Images

Durante os últimos 15 anos, surgiram, por duas vezes, grandes manifestações antigovernamentais, que criaram expectativas de uma “primavera iraniana”. A primeira foi em 2009, uma série de manifestações que contestavam o resultado das eleições presidenciais, nas quais o candidato conservador Mahmud Ahmadinejad saiu vitorioso. Dez anos mais tarde, em 2019, existiu uma nova vaga de protestos relativos ao forte aumento dos combustíveis (num país rico em petróleo), que evoluiu para um movimento pró-democracia.


O que começou como apenas como uma resposta à morte de Mahsa Amini, transformou-se num movimento muito maior. Esta aliança entre as pessoas é inédita. Não só na luta pelos direitos da mulher, mas na história dos movimentos iranianos. A morte de Mahsa Amini abriu um caminho para a reflexão coletiva de valores como o respeito, a pluralidade e a diversidade.


No Irão, o descontentamento é também demonstrado através de slogans políticos, como “Morte ao ditador”, referência ao líder supremo, Ali Khamenei. Nas mobilizações de protesto contra o regime autoritário, o povo iraniano pede o fim das leis e do governo que oprimem as mulheres e as minorias da sociedade. O fim do controlo do país por uma minoria não eleita. O fim da teocracia.


As Nações Unidas estimam que, até agora, 14.000 pessoas tenham sido detidas nos protestos. As forças de segurança têm optado por medidas extremas para interromper os protestos, como o uso de munições reais e de gás pimenta.


Primeira condenação à morte
Imagem: AFP via Getty Images

De acordo com a agência Mizan, a 13 de setembro, um tribunal da capital iraniana condenou à morte, pela primeira vez, um participante dos protestos anti governo.

Segundo a sentença que levou à condenação a pena de morte, a pessoa julgada foi responsabilizada de “ter incendiado um edifício governamental, de perturbar a ordem pública, de reunião e conspiração para cometer um crime contra a segurança nacional, e de ser inimigo de Deus e corrupção na terra”, afirmou a agência. Sem divulgar o nome ou idade do condenado.


Um outro tribunal em Teerão condenou cinco pessoas por “reunião e conspiração para cometer crimes contra a segurança nacional e perturbar a ordem pública”. Estas penas de prisão vão de cinco a 10 anos.


Estes julgamentos rápidos e a portas fechadas são usados, de forma comum, para reprimir qualquer ameaça à República Islâmica. Nas audiências são usadas, sobretudo, acusações vagas como “espalhar a corrupção na terra”, “perturbar a segurança nacional” e “tentativa de derrubar o governo” para atribuir penas pesadas – que incluem a pena de morte e de prisão perpétua.


Em 2021, o Irão condenou 314 pessoas à morte, de acordo com os dados da Amnistia Internacional. A seguir à China, este é o segundo maior número de pessoas executadas globalmente.


República Islâmica: descrença nos seus fundamentos
Imagem: Murad Sezer/Reuters

Os protestos contra os mullahs não são apenas sobre a obrigatoriedade do uso do véu islâmico, mas sobre uma doutrina que dá primazia à religião sobre a política. Os manifestantes denunciam a exploração do xiismo por parte do regime militar e teocrático.


Esta revolta é, na realidade, uma rejeição dos fundamentos ideológicos do regime, do seu dogma do velayat-e faqih (governo do jurista: um conceito inventado por Ayatollah Ruhollah Khomeini, sem precedentes no xiismo, que dá atribui um poder que, anteriormente, apenas pertencia aos reis persas). A doutrina do velayat-e faqih é o que justifica a autoridade do supremo líder, Ali Khamenei.


Este é um regime assente numa aliança entre o clero xiita e o corpo dos guardas da revolução islâmica. A rejeição da República Islâmica reflete-se numa série de fenómenos que observamos no país: ateísmo, consumo de drogas, aumento da criminalidade, maior número de pessoas com o desejo de emigrar. Por motivos semelhantes, estes fenómenos são também observados noutros países de maioria muçulmana.


Tudo isto se deve a esperanças frustradas de um processo de democratização, a impasses económicos e ao desemprego, mas é ampliado pela exploração da religião como uma justificação política. A este respeito, o Irão é um caso especial: possui uma rejeição da religião, particularmente acentuada. De acordo com uma sondagem, realizada em 2020 pela organização holandesa GAMAAN, 73% dos inquiridos admitiram opor-se ao uso forçado do hijab, e apenas 26% disseram acreditar no Mahdi (Messias) – cujo regresso no final dos tempos continua a ser um elemento central do xiismo.



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