Corria o ano de 1983, quando os jornalistas se reuniram para o I Congresso dos Jornalistas Portugueses. O primeiro congresso da história do jornalismo português marcou a concretização tardia de uma vontade coletiva de reunir e debater as questões relacionadas com as redações do país.
Juntos no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, centenas de profissionais do jornalismo usaram o microfone para, como nunca antes, darem voz a si próprios. O debate estendeu-se entre os dias 19 e 22 de janeiro. E as queixas e reivindicações dos que intervieram não são estranhas aos nossos tempos.
José Fialho de Oliveira subiu ao púlpito no primeiro dia e, em nome da Comissão Organizadora, lançou o mote para que aquele fosse um momento de cultura, de liberdade, de camaradagem e de dignidade. Perante centenas de profissionais e estudantes de jornalismo pediu que fosse o fim de “apontar os desvios dos outros sem a coragem de assumirmos os nossos próprios desvios” e lembrou a relação da liberdade de imprensa com a independência económica e justiça salarial: “Passa por aqui a dignidade do exercício da profissão; mas ela terá de exigir independência económica, e por isso, salários compatíveis, um correto enquadramento de acordo com a importância da sua missão.”
O pedido para que se fizesse daquele congresso “um ato de cultura, de liberdade, de camaradagem e de dignidade” não foi em vão e provocou um legado que ainda impacta os dias de hoje. As conclusões constituíram a primeira grande carta de princípios dos jornalistas portugueses sob o lema: “Liberdade de expressão, expressão da Liberdade”.
Lá constam conclusões em tudo atuais como a “defesa da liberdade de expressão”, “a luta pela dignidade do exercício da profissão” ou o “fim dos despedimentos e marginalização por motivos políticos”. São 14 pontos de luta conjunta, mas é do sétimo ponto que partimos: “Rejeitar todas as formas de pressão económica, particularmente a imposição de regimes precários de contratação que condicionam o exercício pleno de atividade do jornalista.”
A precariedade do setor, em 1983 como hoje, é culpada pela diminuição da liberdade de imprensa. E em 1983 como hoje, a precariedade é realidade estrutural (e crescente) do jornalismo. Mas como se relaciona, afinal, a precariedade e a liberdade? Qual é cenário atual? Como se têm movido os jornalistas para fazer concretizar estas conclusões que, daqui a uns dias, celebram o seu 40º aniversário?
Vida familiar comprometida e horas extra por pagar
Reunimos os testemunhos de quatro jornalistas de diferentes idades, diferentes meios de comunicação e diferentes experiências. Falamos com Gonçalo Martins, estagiário na Lusa em Lisboa desde agosto de 2022; Mónica Joady, jornalista d’O Gaiense há 20 anos; Adriano Miranda, fotojornalista do Público há 24 anos; e Leonor Ferreira, jornalista da TSF e vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas.
A precariedade toca a todos nos diferentes aspetos da vida pessoal de cada um. Não interessa se trabalham há pouco mais de 3 meses ou há quase 30 anos, durante as entrevistas percebeu-se que, geralmente, onde há um jornalista, há insatisfação com as condições laborais e, acima de tudo, com a influência que isso tem na vida particular.
Procuramos saber da afetação da liberdade de imprensa, mas outros problemas surgiram, naturalmente, na conversa. Havia uma insistência em falar da vida familiar, e de como esta sai afetada. Um estudo de 2017 do Observatório de Comunicação (OberCom) fazia referência precisamente a este aspeto. E pelos resultados podemos compreender que os jornalistas entrevistados não constituem qualquer exceção. Neste estudo, 40,2% dos 1.224 inquiridos admitia que a conciliação da vida familiar e pessoal constituía um grande ou total condicionamento da atividade jornalística.
Mónica Joady e Gonçalo Martins, apesar das fases tão diferentes da carreira, concordam em absoluto nesta matéria. O jovem estagiário da Lusa trabalha a recibos verdes. Uma condição que, de momento, o agrada. Está, em simultâneo, a tirar um mestrado em Gestão do Território e, por isso, a flexibilidade que a condição de recibos verdes lhe oferece, apesar do baixo salário, permite agilizar estes dois aspetos da vida. Mas diz ter a certeza de que esta é uma satisfação temporária.
Um dia o mestrado acaba e, para esses tempos vindouros, Gonçalo quer, sobretudo, estabilidade: “[Neste momento], a parte financeira não corresponde sempre, mas acho que é um sentimento generalizado, infelizmente. Esta sensação de que se agrava mais com o passar dos anos, quando não se consegue ter um salário suficiente para se ter uma vida estável, com família.”
Para a jornalista d’O Gaiense, a ambição de Gonçalo Martins soa a missão quase impossível. O desejo de estabilidade, remuneração “justa” e compatibilidade com a vida familiar são planos para outras vocações, na visão e experiência de Mónica Joady. “O jornalismo muitas vezes absorve o nosso lado pessoal, a nossa vida familiar, são horas extra umas atrás das outras e muitas das vezes não somos remunerados por isso”, confessa. Conclui com a suposição de que, talvez por isso, “haja tantos divórcios nos jornalistas”: “é muito difícil ter aquela rotina de estar em casa para jantar, fazer o jantar para o marido ou para a esposa, porque não existe isso”. E exemplifica: “Acontece um acidente às 18h30, a minha hora de saída, e até pode ser uma coisa simples de noticiar, mas, e já me aconteceu, pode ser uma coisa mais complicada e ficamos nove horas no local”.
Para falar da vida familiar, Mónica levanta o véu de duas outras questões estruturais e transversais no panorama jornalístico português: as horas extraordinárias não remuneradas e o sentido de missão entre os trabalhadores do setor.
No já referido balanço do OberCom, uma das mais consensuais e, de acordo com o Código do Trabalho, ilegais conclusões dos inquéritos é a perceção do não cumprimento do pagamento das horas extraordinárias de serviço. Em 1.043 jornalistas inquiridos, 81,9% não auferia qualquer tipo de compensação financeira pelas horas de trabalho suplementar. Uma situação que, de tão comum, se normalizou nas redações do país. E que se liga, inclusive, com a tal sensação de missão de informar de que Mónica falou. Uma missão que, na maior parte das vezes, não se lembra do respeito pelas horas pagas, ou pelo horário de trabalho contratualizado.
A notícia não escolhe horas para acontecer, é verdade, mas é também verdade que nesse guarda-chuva que é a missão e a necessidade de informar, se justifica, muitas vezes, a precariedade e o desrespeito pelos direitos laborais.
O que faz de um profissional, um profissional precário é difícil de definir, seja pela amplitude, pela ambiguidade ou pela diversidade das definições. O dicionário da Porto Editora é abrangente e define a precariedade como “condição do que é instável, inseguro, frágil”, o Priberam refere que o precário é um “indivíduo sem vínculo de trabalho permanente”. Mas há outra definição sociológica para a palavra e que não consta no dicionário. O francês Pierre Bordieu define a precariedade como um “novo modo de dominação sobre os trabalhadores que, constrangidos, se submetem a uma aceitação da exploração do seu trabalho caracterizado por uma insegurança generalizada e permanente”.
E é nesta definição de precariedade que todos os jornalistas com quem falamos tipificam a sua condição ou a de muitos que consigo trabalham. Uma insegurança constante num mundo laboral que, pelas oportunidades escassas e falta de investimento, submete os trabalhadores à aceitação de condições pouco dignas e, não poucas vezes, ilegais. O jornalismo tem pouco espaço e o espaço que tem preenche-o com quem não se importa de fazer um esforço (muito) além do contratualizado numa esperança, muitas vezes vã, de criar vínculo à empresa e ver a sua condição melhorada com o tempo.
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