As queixas abundam e não distinguem idade, género nem geografias. Os jornalistas concordam, estão insatisfeitos, o trabalho supera o retorno monetário, e, ao longo do tempo, o desgaste faz surgir a possibilidade de desistir. Mas o movimento coletivo peca por tardio.
São todos “amigos uns dos outros”, afirmou Mónica Joady, o que falta é “capacidade” de se reunirem e “lutar pelos direitos”. As culpas apontou-as à própria classe jornalística, mas não deixou o Sindicato dos Jornalistas (SJ) de fora, porque acha que “não fazem nada”, não há uma estrutura que represente o setor. Do lado do sindicato, Leonor Ferreira, a vice-presidente, vê um “medo” generalizado de reivindicar, gostaria de fazer mais e ter maior poder agregador, mas com 2.000 inscritos não consegue chegar muito longe.
O sindicato oferece apoio jurídico a todos os associados, basta pagar as quotas. O valor é estipulado por lei e corresponde a 1% do vencimento, “se uma pessoa ganhar mil euros, paga o preço de uma francesinha por mês”. Mas o trabalho “é muito complicado”, o sindicato pode fazer pressão sobre as administrações dos órgãos de comunicação social para, por exemplo, pôr um jornalista, que está a trabalhar a recibos verdes, no quadro, mas nada do que possa dizer é obrigatório, porque este tipo de precariedade não é ilegal.
Mesmo quando as empresas incorrem em ilegalidades, nada que o sindicato possa fazer chega para resolver o problema, é preciso outro tipo de poder. Os trabalhadores do Jornal A Bola, da revista Auto Foco e d’A Bola TV, voltaram, pelo sexto ano consecutivo, a não receber subsídio de Natal. O sindicato enviou uma carta à administração das empresas, não receberam resposta, não deu em nada. Para além disso, não têm “força de lei”, resta enviar uma exposição à Autoridade para as Condições de Trabalho, disponibilizar o gabinete jurídico aos jornalistas e esperar. Até se saber o desfecho, deste ou de qualquer outro caso semelhante, é “uma aflição”, acima de tudo para os trabalhadores, mas também para o próprio sindicato, afirmou Leonor Ferreira.
Fazer parte do sindicato tem as suas regalias, mas, para Leonor, não faz sentido associar-se à espera de algo em troca: “o sindicato não tem de dar nada a ninguém, o sindicato somos todos nós”, o sindicato quer-se forte para que a classe tenha essa força e o sentido reivindicativo que, segundo todas as pessoas que entrevistamos, falta. Contou que, muitas vezes, há jornalistas que se associam só para ter acesso ao apoio jurídico (tendo de pagar seis meses de quotas), chegam a ir a tribunal, “a coisa até se resolve, depois desaparecem e deixam de pagar”. E isto “é desmotivador”.
A verdade é que nenhum dos jornalistas com quem falamos é sindicalizado, todos por motivos diferentes. Gonçalo Martins quer ser, mas ainda não é, não há grande motivo, só queria perceber melhor a questão do pagamento das quotas para quem está a recibos. Mónica acha que o sindicato não protege os jornalistas nem os seus interesses e Adriano já foi, chegou até a fazer parte da Direção, mas recentemente entregou o cartão de associado como atitude de protesto, “nada contra a direção”. Em causa estava a falta de “tomada de posição” perante o caso do jornalista Bruno Carvalho, “o único jornalista português que não estava do lado ucraniano, estava do lado russo” na guerra. “[O Bruno Carvalho] foi enxovalhado e o sindicato nunca tomou uma posição, um dia que eu tenha um problema também não toma sobre mim, também não me defende”. Há uma descrença geral, que o sindicato não compreende nem consegue reverter.
Segundo o estudo da OberCom, dos 1.267 inquiridos, apenas 25% dos jornalistas eram sindicalizados, outros 18% já tinham sido, mas a grande maioria, quase 60%, nunca tinha tido o cartão do SJ. Adriano Miranda reconhece que “não é fácil”, cada vez há menos associados e “as pessoas novas não se associam ao mundo sindical” porque “não têm essa consciência”. Leonor relembrou o início da carreira, quando “havia um certo orgulho” em receber o cartão do sindicato e o pensamento que corria era “sou jornalista, tenho a minha carteira profissional, faço parte do sindicato, se tiver algum problema estou aqui, se tiver alguma dúvida tenho aqui alguém que me apoia”.
A união é um ponto fulcral quando se fala na luta pelos direitos dos trabalhadores. Todas as semanas vemos escolas que fecham, comboios que param, hospitais que estão a meio gás. Onde há paragens, há jornalistas a informar. Leonor diz que lhe “faz confusão” esta falta de “força de classe”. “No nosso setor, que é altamente precário, não se vê essa mobilização e isso é muito mau. Se houvesse, de certeza que a maior parte das coisas não se passavam”. Mais uma vez, todos concordam, mas movimentações? “Zero, nada”, diz Adriano, com um tom entre a graça e o desânimo. As reivindicações passam a conversa de café, baixam-se os braços e aceita-se, “hoje ganham dez, amanhã ganham 20, puxa daqui, estica dali” e vai-se vivendo, sem levantar muitas ondas.
“Vamos denunciar uma situação sabendo que depois se calhar não temos outro caminho? Infelizmente é aquela ideia de comer e calar, que é uma ideia horrível”.
Mesmo sem querer, o medo de reivindicar é ensinado nas escolas de jornalismo, fala-se de precariedade nas aulas, preparam-se alunos para uma vida com muitas horas de trabalho e poucos direitos. Quando se licenciam e arranjam um trabalho, mesmo que seja a recibos verdes, ou a trabalhar mais do que as horas contratualizadas, os jovens jornalistas sentem-se verdadeiramente sortudos. E isso cria um medo de denúncia, porque quando se bate a uma porta à procura de emprego, de forma geral, ela fecha-se. Gonçalo corrobora, às vezes “fazer o que se gosta” permite “aceitar esse fator muito chato”. “Vamos denunciar uma situação sabendo que depois se calhar não temos outro caminho? Infelizmente é aquela ideia de comer e calar, que é uma ideia horrível”.
Leonor compreende Gonçalo e todos os estagiários e trabalhadores precários no setor jornalístico. Considera que a solução tem de partir de quem está nos quadros, geralmente jornalistas mais velhos. Mas se também esses vão embora, deixando as redações nas mãos de jovens jornalistas e estagiários, sobra uma falha na memória coletiva da classe. E, enquanto as reivindicações não passarem para a esfera pública, os avanços vão ficando para depois. O SJ gostava de fazer uma greve, mas enquanto não houver “força de classe” vão ficar quietos “porque é um bocadinho constrangedor” ter uma greve “fraquíssima” como foram todas as últimas, segundo Leonor Ferreira. “É um péssimo sinal para o patronato verem que os jornalistas convocam uma greve e depois é só meia dúzia.” “O efeito da greve devia ser parar um órgão de comunicação social”, uma greve sem impacto é uma greve falhada.
Leonor já nem sabia quando tinha sido a última greve, só sabia que tinha tido pouco impacto. E descobri-la é mais trabalhoso do que pode parecer. Uma simples pesquisa no Google por “greve jornalistas” leva-nos dos Estados Unidos a São Tomé e ao Egipto, sem nunca passar por Portugal. A única referência aos meios de comunicação portugueses surge numa notícia sobre uma greve que os jornalistas do Diário Económico teriam marcado em 2016, por terem em atraso os salários de janeiro e fevereiro e o subsídio de Natal de 2015. Cumpriram e, nessa sexta-feira, não houve Diário Económico nas bancas.
Para além dessa, não há sinal de outra greve na comunicação social em Portugal nas dez primeiras páginas de resultados. Mas não quer dizer que não tenham existido. A primeira foi em 1921, em Lisboa, foi uma estreia para os jornalistas, mas reuniu vários profissionais da cadeia de produção da imprensa, como tipógrafos e distribuidores. A paralisação durou de 17 de janeiro a 13 de maio e surgiu no seguimento da I Guerra Mundial. A inflação aumentava a cada dia e os salários desvalorizavam. A resposta sindical não tardou. Na greve de 1921 houve uma separação clara entre trabalhadores e patrões. Surgiu O Jornal, resultado de uma coligação entre várias empresas jornalísticas, que não queriam deixar que apenas A Imprensa de Lisboa, propriedade das associações de trabalhadores da imprensa fizesse a cobertura do acontecimento.
A Batalha, com sede no Porto, era o órgão de informação da Confederação Geral do Trabalho e tornou-se num dos jornais mais relevantes nesta greve. Numa das edições publicadas durante esta paralisação, denunciava a posição do governo de Liberato Pinto, que garantia a publicação d’O Jornal. “O atual governo só tem uma forma de remediar a asneira do governo transacto: retirar às empresas, os tipógrafos do Estado, os tipógrafos militares, e voltar à sua neutralidade”. E, mais à frente, “não fazem outra coisa senão mentir os órgãos das indústrias do jornalismo, órgãos que estão saindo tarde e a más horas, e mesmo assim graças ao governo do sr. Liberato Pinto, que, colocando-se ostensivamente ao lado dos referidos industriais, lhes forneceu soldados e polícias tipógrafos”. As reivindicações dos jornalistas acabaram por ser recusadas por todas as empresas.
Os salários baixos continuaram e, já depois da Revolução dos Cravos, a 12 de dezembro de 1978, os jornalistas organizaram a segunda greve, convocada pelo Sindicato dos Jornalistas. A primeira de sempre para os profissionais da rádio. Surgiu depois de se ter anunciado a perda de diuturnidades e uma sobrecarga no horário de trabalho. A adesão chegou muito perto dos 100%, pararam-se noticiários, a rádio pública esteve em silêncio durante uma hora. No final do dia, o Ministério do Trabalho convocou uma reunião com a Comissão Negociadora Sindical e a Associação da Imprensa Diária, e ambas as partes chegaram a acordo.
Já lá vão quase 11 anos desde a greve “recente” com mais impacto a nível nacional. Em 2012, a Agência Lusa e o Público juntaram-se em protesto. Na Lusa, a adesão foi de 100% no primeiro dia. Os funcionários insurgiram-se contra o corte de 30,9% no orçamento para 2013, que despoletou um processo de rescisões amigáveis. Na altura, a Comissão de Trabalhadores temia mesmo um despedimento coletivo, como tinha acontecido no Público. Tinham sido despedidos 48 trabalhadores, depois de terem sido cortados 3,5 milhões de euros do orçamento do jornal.
As greves não voltaram e o sindicato está descrente na classe jornalística, mas, ainda assim, houve uma movimentação coletiva recente. João Pedro Pereira, jornalista do Público, criou uma tabela colaborativa que designou como “um esforço para a transparência salarial no jornalismo”. É totalmente anónima e há vários espaços a ser preenchidos: função, anos de experiência, género, empresa, setor, cidade, salário e outros. O que aparece na tabela é o retrato de um setor mal pago, com poucos benefícios e pouca progressão na carreira, e só choca quem está de fora.
Há jornalistas que trabalham há 20 anos a ganhar 700€, há muitos que, para ganhar mais algum, prestam serviços em vários órgãos de comunicação a recibos verdes. A tabela correu no Twitter e já conta com quase 200 testemunhos. Destacam-se os salários do Fumaça, podcast independente, totalmente financiado pelo público. Com subsídios de férias, Natal e alimentação, são 1340€ por mês, muito mais do que a maior parte dos OCS de referência pagam aos seus funcionários.
O último Congresso dos Jornalistas foi em 2017, sob o mote “Afirmar o jornalismo”. Já não acontecia há 18 anos, foi a quarta vez que os jornalistas se reuniram dessa forma para pensar e debater o jornalismo. Falou-se de todos os problemas da classe jornalística, da precariedade, das horas extra, dos estagiários que sustentam redações, mas, passados mais de cinco anos, as mudanças não se concretizaram. Uma das propostas aprovadas foi o boicote a conferências de imprensa que não permitem perguntas. Mas até hoje, multiplicaram-se, principalmente no meio desportivo. E o boicote não acontece, as salas estão cheias de jornalistas que vão ouvir sem questionar.
O próximo congresso está marcado para 2024, 41 anos depois do primeiro e 90 anos depois da criação do SJ. Os temas continuam os mesmos: baixos salários, precariedade, financiamento e liberdade. Até lá, as conversas são para ter em privado, no café ou quando saírem à noite. Todos os dias, dão a cara, a voz e as palavras por outras classes, mas a organização coletiva própria fica marcada para tempo indefinido, quando se for o medo e chegar a coragem.
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