top of page
Writer's pictureFilipa Silva

Sob o grosso manto da invisibilidade

Não sei o que justificou o epíteto. Afinal, não era homem de heranças. A ser o
primogénito, só se fosse dos pobres que encontraram morada no avesso do viaduto da Areosa.
Chamava-se Mário Fernando Conceição Gomes e vivia debaixo de uma metáfora de betão. A
vida seguia em cima, apressada, para a frente e para trás, interrompida, como é sempre, por
um ou outro acidente. A dele, estacionada em baixo, sem regras de circulação ou ordem,
enrodilhada num colchão velho, entre restos de roupa, de comida e de dejetos. Mas com vista
para um pilar onde alguém escreveu um dia: “Sr. Mário, o Príncipe da Areosa”.



Em memória do Sr. Mário


Quem tratou da inscrição, não sei. Pensei que tivesse sido um voluntário da associação

a que pertenci, mas dizem-me que não. A verdade é que foi essa associação que, durante

alguns anos, me deu a oportunidade de conhecer pessoas como o Sr. Mário.


Recordo que, com ele, nem sempre era fácil conversar. Quando lá chegávamos, aos

domingos, pelas onze da noite, já raramente o apanhávamos de pé. Dormia ou fingia dormir.

Quando estava acordado, era de poucas palavras, quando não soltava alguma frase hostil.


O Pedro, que o conhecia há mais tempo, e que a espaços até lhe aparava a barba e o

cabelo, devolve-me outras recordações: “era um homem bom, com um humor inteligente, um

sorriso bonito”, era até “um sedutor”, garantia-me há dias. Gostava de laranjas e de ler a Bíblia,

que guardava religiosamente sob a almofada. Já a hostilidade que se colou na minha memória,

tem boa explicação: “Recebia um carrossel de voluntários todos os dias; não deve ser fácil ter

amigos tão rotativos…”. Não deve, de facto.


O Sr. Mário parecia mais velho do que era na realidade. Arrastava um corpo débil,

minado pelo consumo crónico de álcool, uma paupérrima alimentação e, em cima ou por baixo

disso, quase 20 anos de vida na rua. Vinte anos a viver exposto assim…


Tinha 48 anos. Encontrei por estes dias entre as minhas coisas uma etiqueta do

Hospital de São João da qual constam o nome e a data de nascimento dele. Tenho-a porque a

11 de dezembro de 2010, faz agora doze anos, o Sr. Mário deu entrada naquela unidade de

saúde depois de ter sido brutalmente espancado, de madrugada, junto ao lugar onde dormia.

Foi encontrado uns metros adiante, inconsciente, numa poça de sangue da qual ainda vi

vestígios.


Revejo e-mails trocados na altura para encontrar o diagnóstico: um traumatismo crânio-

encefálico, fraturas na órbita e no nariz. Em cima disto, disseram-nos no hospital, uma

pneumonia. Vi-o de olhos fechados, sempre muito trémulo. Vi-o, mais tarde, de olhos abertos,

mas tão baços que pareciam os de um cego. Às vezes falava, mas recordo-me que não

conseguia perceber o que dizia. Esteve nos cuidados intermédios, na cirurgia geral. O

prognóstico foi sempre reservado. As melhoras, muito lentas. Os cuidados continuados, o

melhor cenário que tinha para o futuro. O futuro não veio a acontecer.


Morreu no hospital a 10 de março de 2011, três dias depois de completar 49 anos.

O caso foi investigado pela Polícia Judiciária, mas os responsáveis, tanto quanto sei,

nunca foram encontrados. Numa das vias mais movimentadas do Grande Porto, onde vive e trabalha tanta gente, ninguém viu nada. Mesmo na internet, encontro hoje duas ou três

entradas sobre o caso. Nada mais.


Várias coisas impressionam-me neste caso, que a etiqueta do hospital veio fazer saltar

da gaveta da minha memória: a brutalidade da agressão, sobre alguém que, por arma, nada

mais tinha que a voz grossa; a impunidade do crime; mas, acima disto, a ideia da extrema

solidão, do completo isolamento, do grosso manto de invisibilidade que cobre as pessoas em

condição de sem-abrigo.


Estamos em época natalícia e, não tarda, a comunicação social dará eco, no seu

clássico alinhamento do Natal, de refeições e cabazes distribuídos entre os mais pobres. O

Presidente da República também se juntará, decerto, nalguma iniciativa solidária que o meu

cinismo não conseguirá ver senão como um gesto que visa mais apaziguar-nos do que

sobressaltar-nos. A verdade é que passada a quadra, nem Belém é capaz de manter a estrela

acesa sobre o problema. E tem-no tentado, diga-se, mas com que sucesso?


Os Censos de 2011, incluíram, pela primeira vez, a população sem-abrigo em Portugal.

Concluiu-se pela existência de 696 pessoas, no país, a viverem na rua ou em espaço público.

Dez anos depois, nos Censos de 2021, já eram 2.127 os sem-teto identificados. Os números

estão, ainda assim, aquém da realidade. O inquérito feito pela Estratégia Nacional de

Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo (ENIPSSA), com a ajuda das autarquias,

contabilizava 3.420 sem-teto no final de 2020, num total de 8.209 indivíduos sem-abrigo (além

dos que vivem na rua, o número contempla os alojados em abrigo de emergência ou sem

residência permanente). Mas piorou: os números mais recentes da ENIPSSA, divulgados em

outubro, já apontam para 9 mil pessoas. O problema aumentou ou o levantamento é que

melhorou? É difícil responder à questão.


A ENIPSSA como a Estratégia Municipal para a Integração de Pessoas em Situação de

Sem Abrigo do Porto, aprovada em junho deste ano, fazem-me pensar que há uma maior

sensibilidade para o problema. Também sugerem que há uma evolução no pensamento sobre

o tema. Uma evolução que se manifesta, por exemplo, no facto de estes planos contemplarem

o que há muito se sabe: que é necessário um “trabalho articulado” em campos como a

habitação, o emprego, a saúde e o acompanhamento social para ajudar estas pessoas. Ou de

que é fundamental contar com a ajuda das organizações que trabalham junto destas

populações. Os números, contudo, parecem dizer-nos que continuamos a falhar redondamente

no combate e na prevenção do problema.


Faltará aplicar, de facto, o que no papel se prevê, envolver mais no processo pessoas

que saíram da rua, aumentar o número de gestores de caso e apostar - é minha convicção -

num trabalho de reabilitação das ligações pessoais e familiares destes indivíduos. E, já agora,

dar uma escala decente às respostas pensadas. Um exemplo: a Câmara do Porto tem na sua

estratégia a criação de uma coisa com o nome hermético de Estrutura Residencial de Baixo

Limiar, qualquer coisa como um lar para sem-abrigo “de longo termo e com ausência de

condição para plena autonomia”. O projeto foi submetido ao PRR. A câmara pede, para o

construir, 547.350 euros. Para quantas vagas inicialmente? Cinco.


É seguro pensar que nas cidades, onde tantos se encontram e tantos se perdem,

haverá sempre pessoas sem morada certa. A vulnerabilidade, antes de ser social, é humana e

não vai desaparecer. Mas é possível assegurar mais humanidade, mais dignidade, maior

segurança e visibilidade a quem não tem paredes para se resguardar do perigo. Disso, não

tenhamos dúvidas. Ao Sr. Mário, contudo, já nada disso valerá.


Comments


bottom of page