Na cidade do Porto apenas 4% das ruas têm nomes de mulheres. Esta é a conclusão de um estudo realizado pelo cientista de dados João Bernardo Narciso e por Cláudio Lemos, especialista em inteligência artificial. Os dois jovens, inspirados pela peça “Todos os Dias me Sujo de Coisas Eternas” de Sara Barros Leitão, debruçaram-se sobre a toponímia da Invicta e procuraram demonstrar como esta podem ser “representações de relações de poder”.
Talvez a questão não surja com muita frequência no imaginário coletivo, mas a toponímia é uma área de estudos que se ocupa de saber sobre a origem e evolução dos nomes geográficos, ou seja, de localidades, lugares ou ruas. Foi neste último ponto que os criadores de “Ruas do Género” quiseram trabalhar. Analisaram o nome dos 2007 arruamentos da cidade e dividiram os dados seguindo três critérios: nomes masculinos, nomes femininos e nomes referentes “a coisas ou conceitos”.
Das duas mil ruas da cidade, apenas 4% tem nome de mulheres, 44% tem nome de homens e os restantes 52% tem nome de “coisas ou conceitos”. Uma conclusão que, dizem os autores, espelha a “opressão das mulheres” através da “componente territorial”. E dão mais exemplos. Comparam a questão à negação do acesso das mulheres ao espaço público na Grécia Antiga, à reserva do papel doméstico às mulheres durante a industrialização, a partir do século XIX e até à disputa, nos dias de hoje, “de construções sociais de género e de assimetrias do poder” no espaço público.
O objetivo é, acima de tudo, falar da sub-representação feminina e a ideia surgiu pela vontade que a peça “Todos os dias me sujo de coisas eternas” despertou de fazer uma “pesquisa mais exaustiva sobre o assunto”. “Sou cientista de dados e, portanto, costumo trabalhar com diferentes datasets, e, portanto, meti mãos à massa e comecei a explorar alguns dados abertos de mapas da cidade do Porto. Percebi que havia uma diferença muito grande entre a quantidade de ruas com nome de mulher e ruas com nome de homem, e que havia potencial para um artigo sobre isso”, explicou João Bernardo Narciso a’O EXPOENTE.
O projeto ocupou o tempo livre dos criadores do último ano e meio. Esteve algum tempo arrumado na gaveta, mas à medida que se foram apercebendo que “poderia ter algum potencial”, João Bernardo Narciso e Cláudio Lemos começaram a trabalhar “de forma mais intensiva para o poder publicar”.
A toponímia como espelho ideológico
“As cidades são organismos vivos e em constante transformação, produtos históricos de influências sociais e culturais. Desse modo, são também representações de relações de poder. Inspirados pela peça Todos os Dias me Sujo de Coisas Eternas da Sara Barros Leitão, debruçamo-nos sobre a cidade do Porto e a sua toponímia, como uma forma que essas representações podem tomar.” Este é o mote e o primeiro parágrafo que quem visita o site do projeto pode ler.
Outra das conclusões destacadas pelos autores prende-se com a representação minoritária (dentro do já minoritário grupo de figuras femininas) de mulheres das “letras, cientistas, professoras”. Dos 4% de ruas com nome de mulheres, 46 referem-se a santas e outras figuras religiosas, enquanto 13 são nome de escritoras, 14 são referentes a artistas e as restantes 14 dividem-se entre três professoras, seis monarcas, uma engenheira, uma cientista, uma senhoria e duas de origem desconhecida.
Além da diferença quantitativa, o estudo foca-se na análise de outro critério. Não sendo claro, nem objetivo o que faz de uma rua mais ou menos importante, as ruas foram analisadas pelo seu tamanho. E aqui, a tendência foi, mais uma vez, favorável aos homens. É preciso chegar à 11ª rua entre as ruas com nomes de pessoas, para se chegar à maior rua “feminina”. Curiosamente, é a rua Santa Catarina, uma das (senão a mais) importantes e conhecidas ruas da cidade.
A apresentação dos dados no site dedicado ao projeto informa por tópicos os pontos de interesse dos investigadores durante a realização do projeto e faz uma representação visual da discrepância dos dados. Por exemplo, para se perceber a diferença entre o número de ruas com nomes de homens e de mulheres, todas as ruas surgem listadas na vertical (cada coluna respetiva a um dos géneros) e consegue-se perceber que durante grande parte do scroll vertical só é possível ver nomes de ruas masculinas.
Premiados e interventivos
O trabalho destes jovens portugueses já foi consagrado internacionalmente. Foram selecionados e premiados com uma menção honrosa no prémio The Pudding Cup 2022, destinado às “melhores histórias visuais e baseadas em dados de 2022” e que é da responsabilidade do The Pudding, uma referência internacional no campo do jornalismo de dados.
Este trabalho não tem uma função de mera demonstração da desigualdade. Como acontece quando o tema é fraturante como a desigualdade de género, há uma intenção de intervir na sociedade, provocar a mudança. E nem mesmo a toponímia escapa às mudanças dos tempos. Uma das bandeiras de João Bernardo Narciso e Cláudio Lemos neste trabalho relaciona-se com Gisberta Salce Júnior, uma mulher trans assassinada, vítima de transfobia, em 2006 na cidade do Porto. Os dois jovens ligam-se ao movimento que quer dar o nome de Gisberta a um arruamento da cidade, que foi lançado pelo Movimento do Orgulho do Porto. Dizem, no seu site, que o legado de Gisberta “merece ser recordado”.
“A toponímia não é um simples pormenor ou processo arbitrário: é feita de escolhas políticas e ideológicas que reforçam narrativas hegemónicas. É preciso refletir sobre elas.” É esta a última frase que se pode ler no site. Uma ideia que conclui e resume as intenções do projeto. Fazer refletir sobre a toponímia e lembrar a importância e não-arbitrariedade do nome das ruas da Invicta. Questionado sobre se fizeram este trabalho chegar aos responsáveis políticos, o autor João Bernardo Narciso diz que não: “este projeto foi publicado nas nossas redes sociais pessoais e tem feito o seu caminho desde aí”.
Em Lisboa, surgiu, mais recentemente, um projeto semelhante. O cientista de dados Manuel Banza publicou na sua página do GitHub uma visualização de dados designada “Desigualdade de Género na Toponomia de Lisboa”. Vai mais longe do que o estudo portuense e analisa, além do nome das ruas, o nome dos jardins, parques, escolas e hospitais da cidade. Quanto às ruas, a conclusão não diferiu muito da do estudo portuense: só 5% das ruas da capital tem nomes femininos e, tal como no Porto, 44% tem nomes masculinos.
Os dados do projeto portuense “Ruas do Género” pode ser consultado no seu site oficial e o projeto do lisboeta Manuel Banza pode ser consultado no GitHub do autor.
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