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Writer's pictureMarta Sofia Ribeiro

O Batalha renasceu da história que o construiu

O cinema e o Porto têm uma relação conturbada. A cidade já foi um ponto central de fruição cinéfila, havia salas espalhadas por todo o lado, cinemas de bairro, em qualquer sítio havia um filme a brotar. Depois, pouco a pouco, começaram a fechar – como aconteceu com o Batalha. Agora, a tendência parece estar a ser revertida aos poucos. Abriu o Trindade, voltou o Teatro Municipal do Porto, há novos coletivos, que cada vez mais ocupam um espaço que parecia vazio há alguns anos. A abertura do Batalha – Centro de Cinema parece ser o culminar desta nova fase.
Desde dia 9 de dezembro, o Batalha - Centro de Cinema está aberto ao público. Fotografia: Facebook do Batalha - Centro de Cinema

A história do Batalha está entranhada na história cultural do Porto. É um marco tão incontestável que a sua simples existência inspirou uma expressão típica: “vai no Batalha”, que é como quem diz “isso é mentira” (só nos filmes poderia não ser).


A firma Neves e Pascaud foi fundada no final do século XIX para a construção no Teatro Carlos Alberto, em 1897. Construíram ainda o Salão Jardim da Trindade (1913) e, antes disso, o Salão High Life, em 1906, que viria a dar origem ao Cinema Batalha. Começou por ser na Boavista, em 1908 passou para a Praça da Batalha, onde se mantém até hoje. Foi demolido em 1944 e reabriu em 1947, já com a fachada que se mantém, pensada pelo arquiteto Artur Andrade.


Em 2000 fechou. Na altura, teriam uma média de dois ou três espectadores por sessão e as receitas não davam para pagar as despesas. Dois anos antes, em 1998, sala esgotada para ver o Titanic, mais de mil lugares ocupados. Mas era impossível manter o Batalha, não havia Titanics que a sustentassem.


Em 2006, houve uma tentativa de o revitalizar. O Gabinete Comércio Vivo (parceria entre a Associação de Comerciantes e a Câmara do Porto) deu alguma esperança ao edifício, levou a cabo uma requalificação que custou cerca de um milhão de euros, mas em 2010 o Batalha voltou a fechar portas. Na altura, Nuno Camilo, então presidente da Associação de Comerciantes do Porto, sentenciava a revitalização do emblemático cinema como um “projeto ruinoso, que não tinha viabilidade”, devido “aos prejuízos mensais avultados” (a renda mensal era de cinco mil euros) e ao estado do edifício, que dizia “precisar de algumas intervenções, a cozinha precisa de ser reformulada e o imóvel tem infiltrações”.


Em 2012, foi classificado como Monumento de Interesse Público. Em 2017, a Câmara Municipal do Porto assumiu a gestão do Batalha durante os 25 anos que se seguiam.


A arte, a censura e a recuperação

O tempo passou e a fachada do Batalha ficava cada vez mais deteriorada, enchiam-na grafittis e autocolantes. O edifício, outrora imponente, passava cada vez mais despercebido, a humidade tomava conta das paredes, as portas estavam corroídas pela ferrugem. Em 2019, o Tribunal de Contas permitiu a reabilitação do edifício: o Batalha ia abrir outra vez. As obras terminaram em 2022 e, no dia 9 de dezembro, as portas abriram, as pessoas entraram e viram um Batalha renovado, com um programa adaptado aos dias que correm, mas com a ambiência intemporal que sempre o abraçara.


Um dos grandes feitos desta renovação foi a recuperação dos murais de Júlio Pomar. Em 1946, o pintor dava as primeiras pinceladas no foyer principal do edifício e numa parede no andar superior. Tinha 20 anos, estava no início da carreira. Foi preso por ordem da polícia política no ano seguinte e só no final de 1947, quando foi libertado, conseguiu terminar a obra. Mas foi sol de pouca dura, desde 1948 era impossível ver os frescos de Júlio Pomar: a polícia política mandou cobrir os painéis com tinta.

Aquando da tentativa de revitalização do Batalha, em 2006, tinha sido utilizado um processo mecânico para tentar desvendar a obra, por baixo das sete camadas de tinta que a escondiam desde os anos 40. Não resultou e destruiu-a parcialmente. Desta vez, foi através de um processo químico que os frescos, que se pensavam irremediavelmente perdidos, foram revelados, emocionando todos os presentes.


Os murais são uma representação surrealista da festa de São João no Porto e o ato de censura nada teve a ver com o tema eternizado nas paredes. Foi a oposição ao regime de Salazar que custou a Júlio Pomar a perda da sua arte. Não chegou a saber que tinham conseguido recuperar os desenhos originais.


Em 2018, quando o artista morreu, pairavam as dúvidas sobre o que se devia fazer. No ano anterior, Rui Moreira tinha garantido, numa Assembleia Municipal, que Júlio Pomar estava disposto a refazer os frescos. Mas Alexandre Alves Costa, o arquiteto responsável pela recuperação do cinema, desmentiu, afirmando que ou os frescos eram recuperáveis ou não. Tudo indicava que não eram, e o objetivo (e desejo de Júlio Pomar) era mostrar o motivo pelo qual tinham sido destruídos, torná-los numa espécie de “manifesto antifascista”.


Pensou-se projetar uma fotografia a preto e branco (que se pode ver acima), o próprio artista tinha gostado da ideia. Mas desde sempre, tinha-se confirmado que essa seria uma decisão tomada perto do final da obra. Antes, era preciso fazer as mudanças estruturais, o edifício estava num estado pior do que se antecipava e foi quase necessário construir um novo Batalha e manter a carcaça que lhe era característica.


Na abertura do Batalha, Alexandre Alves Costa, Sergio Fernandez e Miguel Ribeiro do Atelier 15, deram uma visita guiada ao espaço que ajudaram a projetar. Fotografia: Facebook do Batalha - Centro de Cinema

Uns meses antes do final das obras, deixaram de ser necessários planos secundários, não foram necessárias projeções ou novos desenhos. Contra todas as probabilidades, a obra de Júlio Pomar, carregada de valor patrimonial, surgiu por baixo das camadas de tinta.


Para além dos frescos, também o martelo na mão do operário e a foice na mão da ceifeira, no baixo e alto relevo na fachada, obra de Américo Braga, foram destruídos por representarem uma iconografia comunista. Agora, o martelo foi reposto em aço, “simbolizando a sua restituição permanente”. Até os puxadores das portas, um “C” e um “B” (iniciais de Cinema Batalha) foram retirados porque o então presidente da Câmara achava que tinham uma leitura subliminar: Comité Bolchevista.

O martelo outrora destruído pela PIDE foi substituído por um novo de aço. Fotografia: Facebook do Batalha - Centro de Cinema

O Batalha – Centro de Cinema alberga ainda obras de Arlindo Rocha, António Sampaio e Augusto Gomes. Uma escultura da deusa romana Flora, uma pintura com desenhos de paisagens natural e altos relevos com motivos florais e ornitológicos.


O cinema é muitas coisas

Aqui a interdisciplinaridade é a palavra de ordem. O programa é extenso, quer mostrar produções nacionais e internacionais, com estéticas que fujam ao tradicional, de tempos diferentes. Mas o Batalha não se fica pelo cinema na sua forma mais óbvia, há cursos, workshops, parcerias com escolas. O objetivo é ser, de facto, um Centro de Cinema, um espaço de discussão, descoberta e estudo sobre cinema. Há grupos, oficinas e até um quizz na última terça-feira de cada mês.

Políticas do Sci-Fi é o primeiro programa temático do Batalha. Fotografia: Facebook do Batalha - Centro de Cinema

A ficção científica foi a escolhida para estar em destaque no primeiro programa temático. Políticas do Sci-fi propõe-se a "discutir o modo como o género da ficção científica vem absorvendo a discussão de questões que marcaram debates políticos e culturais do século XX e do nosso tempo”. Estende-se até dia 20 de janeiro e é composto por sessões de cinema, workshops e palestras.

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