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“A geração dos 600 euros” e a liberdade de imprensa

Gonçalo começou a trabalhar na Lusa no ano passado e vê a entrada no mercado de trabalho como um “desafio”. Dos finalistas no seu ano, é dos poucos com emprego na área do jornalismo, mas confessou que não tem um contrato estável e que a remuneração “não corresponde às expectativas”. Trabalha a recibos verdes e recebe uma quantia monetária por cada artigo que escreve, o que impede de ter “uma vida estável”. “Por estar a recibos verdes, não tenho um valor fixo a receber e é difícil conseguir imaginar a segurança para o mês seguinte”, confidenciou o jovem jornalista. Esta realidade impede-o de garantir a sua independência financeira ou de pensar em “construir família”.


Apesar de se tratar de um cenário que não o agrada, Gonçalo contou que, na faculdade, ele e os colegas já foram aprontados para se habituarem à ideia de que estas condições fazem parte do dia-a-dia dos jornalistas. “Há precariedade no jornalismo e para isso já estamos, infelizmente, preparados”, rematou o jovem trabalhador.


Imagem: Unsplash

Ausência de vínculo, salários baixos, contratos precários. São condições para as quais já estão preparados e que se resumem numa frase de Adriano Miranda: esta “é a geração dos 600 euros”. O fotojornalista acredita que a falta de oportunidades se acentuou nos últimos anos e é, agora, “extremamente difícil” ingressar num órgão de comunicação com um contrato estável. “Nós podemos dizer que esta geração é muito mais bem-formada do que a geração dos nossos pais ou dos nossos avós, mas em termos de oportunidades e de matéria salarial ficam aquém dos nossos avós ou dos nossos pais”, constatou o fotojornalista.


São poucos os jornalistas recém-licenciados que encontram trabalho e, quando conseguem uma oportunidade na área, é geralmente em condições precárias. E é essa a realidade em “muitos meios de comunicação social”, que “sobrevivem à custa dos estagiários e ao fim de 3 meses mandam essas pessoas embora”, como nos contou Mónica Joady. A jornalista d’O Gaiense referia-se ao trabalho de jovens estagiários que, por um curto período, trabalham “de borla” ou a recibos verdes. Cria-se nos jovens a ideia de que esta é uma situação transitória até que fiquem vinculados à empresa, com um contrato de trabalho. Mas, para Mónica, “isso não é verdade, é uma forma de despachar. E [os meios de comunicação social] vão sobrevivendo assim”.


Sobrevivem os jornais durante anos, trabalham os estagiários durante meses e perde-se a experiência nas redações. “Esses estagiários, que não têm culpa nenhuma, acabam por tirar um bocado o lugar às pessoas com experiência e que precisavam de estar a trabalhar”, comentou a jornalista.


“Agora vão buscar jornalistas que acabam de se formar e que se inscrevem no Instituto de Emprego e Formação Profissional. Contratam-nos por nove meses. Como a maior parte do ordenado é pago pelo Estado, as empresas só pagam um bocadinho."

E Mónica não foi a única a relatar a situação. Leonor Ferreira, dirigente sindical, está a par de algumas das práticas adotadas pelos órgãos de comunicação social, com o objetivo de reduzir custos: “agora vão buscar jornalistas que acabam de se formar e que se inscrevem no Instituto de Emprego e Formação Profissional. Contratam-nos por nove meses. Como a maior parte do ordenado é pago pelo Estado, as empresas só pagam um bocadinho”. A vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas acrescentou que “se calhar, renovam por mais nove meses. Se tiverem sorte, até podem ficar. Mas a maioria deles, acabando o contrato, vai embora”.


A justificação está, aparentemente, numa “crise enorme na comunicação social”, que é resolvida por parte dos gabinetes administrativos com “aquela típica política de cortar no trabalho”, diminuindo as despesas através da redução dos encargos com trabalhadores. Como resultado, aumentam os despedimentos e “normalmente não há substituição”. Ou então, quando há, “são jornalistas muito novos que estão a começar na profissão. A maior parte deles quer um trabalho, portanto não se importa de trabalhar numa situação precária, com recibos verdes e, muitas vezes, em situações de exploração em termos de horas de trabalho”, verificou a jornalista da TSF.


No âmbito de uma publicação de 2014 sobre “As novas gerações de jornalistas em Portugal”, coordenada pelo sociólogo José Rebelo, realizou-se um inquérito a 515 jornalistas, todos com menos de 38 anos. Das conclusões, destacamos duas: metade dos inquiridos apresentava um contrato laboral precário e, dos 119 trabalhadores por conta própria, 75,7% admitiram que aceitaram essa condição por terem tido dificuldade em conseguir um contrato de trabalho. Estes dados mostram uma realidade que, até hoje, não melhorou.


O mesmo artigo refere que “é menos lucrativo manter um jornalista com muitos anos de casa, com um estatuto derivado dessa experiência e muito provavelmente sindicalizado, do que um jovem contratado a prazo ou a recibo verde que, por se encontrar nessa condição, se sujeita mais facilmente a salários reduzidos e a horas extraordinárias”. Desta ideia surgem despedimentos por parte das direções, mas há também os jornalistas que saem da área por vontade própria. 63,3% dos entrevistados confessou que já tinha equacionado o abandono da profissão. Os motivos são, na sua maioria, “a baixa remuneração, o stress, a precariedade, a sobrecarga horária, a falta de reconhecimento e a desmotivação”.


E, assim, resistem as redações. Mas a que custo? Quando a perda de um profissional experiente não é colmatada com a entrada de outro trabalhador igualmente preparado, resta uma secretária vazia, que é ocupada de quando em quando, a tempo incerto, por estagiários. Consequentemente, a pouco e pouco, a “experiência” vai desaparecendo das redações.


Mas os jornalistas não são os únicos afetados por esta realidade. É toda a sociedade, plural e democrática, que fica a perder quando a qualidade do jornalismo é afetada pela perda da base, das raízes das redações. E isso tem implicações, até, na liberdade de imprensa, que “fica sempre ameaçada quando, por exemplo, alguém faz uma pressão sobre um jovem jornalista”. Leonor Ferreira mencionou que o receio de ser despedido leva a que se ceda a este tipo de pressões, nomeadamente quando surgem de ordens de diretores. “E é evidente que a liberdade de imprensa ameaçada nesse aspeto. É que não tenho a menor dúvida”, concluiu a sindicalista.


Imagem: Sebastião Almeida

E a qualidade do jornalismo – e consequentemente a liberdade de imprensa – fica também afetada quando profissionais se veem obrigados a mudar de emprego em busca de melhores condições de vida. Os baixos salários e a instabilidade financeira levam a que abandonem o jornalismo, apesar do “sentido de missão” que os motivou a iniciar uma carreira na área. Gonçalo nota que, tendo em conta o estado atual do trabalho na comunicação social, “a certa altura [os jornalistas] vão mudar de emprego, e essa mudança de emprego pode ser feita dentro da área da comunicação como fora dela. Conheço casos de jornalistas - e não é uma coisa assim tão incomum - que depois vão trabalhar para assessores”.


E assim se perdem jornalistas, assim se vão os quadros, assim se dá mais um passo no caminho da precariedade. Uma precariedade que se vê nos jovens – na sujeição a salários reduzidos e contratos a termo – e se espelha nas redações, com consequências para toda a sociedade, afetando a liberdade de imprensa e o pluralismo democrático.


Esta é a terceira parte da Grande Reportagem "Precariedade no jornalismo: quando o quarto poder 'come e cala'". Para consultar a quarta parte clique aqui.

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