Nós temos de nos desfazer desta pressa inimiga que nos consome. O humano e a sua essência inacabam-se na pressa dos dias, na correria pela face última. Atrás, sempre atrás, de uma conclusão do espírito que não existe e esquecemos a magia da lentidão, a completude inerente aos passos vagarosos. A culpa é da literatura. Ergueram-se estátuas aos poetas da pressa e do imediato e acabamos tolhidos por uma ideia mais estética do que prática. Gritamos os versos de Sophia “mais tarde será tarde e já é tarde” e percebemos a frase como verdadeira sem entender para o que nos atrasamos ao certo. O Manuel António Pina era mais comedido, mas ainda assim servente natural da pressa. Dizia “é apenas um pouco tarde”. Talvez se achasse mais comedido, menos radical. Tomava a pressa como certeza, mas talvez não fosse já demasiado tarde. Mas tarde para quê? É cedo, é cedíssimo, aliás. Só temos é de, coletivamente, abrandar o passo, parar de correr atrás disso que o ciclo vicioso da produtividade nos pede.
Havia um escritor, de que não me recordo o nome, que escreveu 15 livros em dez anos. Tornou-se milionário. O também apressado público apressava-se a comprar os apressados livros deste apressado escritor. Mas o escritor matou-se a meio do 16º livro. Não podia lidar com a vergonha de trair o seu espírito jovem tão calmo e artista. Percebera que não pensara mais do que um segundo em cada frase dos seus sucessos. Atormentou-se perante o gigantismo da obra por fazer, a obra que a lentidão teria feito. E matou-se, simples assim. Fez-se mártir pela causa dos passos lentos.
Mas de nada serviu. A pressa também matou os mártires ao mesmo tempo que democratizou esse estatuto. Esta neo-ultra-pressa disse-nos para todos serem mártires. Disse-nos que a partir de agora haveria um Cristo em cada levemente ferido. Mas o que houve, verdadeiramente, foi um esquecido em cada herói. Levado pela espuma tão fraca dos dias onde os mártires são pousados e por onde caem no poço infinito do esquecimento.
Antes da morte, o escritor só deixou um papel com duas frases de despedida: “O tapete morreu pela liberdade de ser mágico e aquela outra ali, uma papoila já mãe, esfaqueou cada pétala para alertar para a falta de clorofila nos jardins holandeses. Mas depois foi esta pressa inimiga…” Uma consciência plena dos riscos de ser mártir nos tempos que correm. Tal como a arte, uma inevitabilidade e uma impossibilidade, ao mesmo tempo.
A vida encarregar-se-á de nos matar, com pressa, sem pressa, mártires ou mortos sem causa a defender. Mas antes disso, cabe-nos a nós encarregarmo-nos de abrandar o passo, alargar os prazos, dormir mais. A vida é pouca, é certo, mas tem de ser boa. Não corramos. Não vivamos como se morrêssemos amanhã. Podemos viver como se morrêssemos daqui a 400 anos. Porquê? Porque vai tudo dar ao mesmo. Os mortos não pensam em legados, nem em nada. Por isso, vamos ser amigos do corpo, do cérebro, da produção artística, dos processos espirituais, das relações e acalmar-nos. O próximo mundo será sem pressa, vamos construi-lo. Ou esperar que esta pressa inimiga nos destrua para começar de novo. Mas é triste esperar pela destruição, comecemos pela nossa desconstrução. Racional ou irracional, mas sempre lenta e paciente.
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